Acre se despede de ‘Gouveião’: Funcionário da Aleac foi testemunha ocular da história recente do Acre

O homem cujo corpo baixou à terra fria do cemitério Morada da Paz na manhã de segunda-feira (02), em Rio Branco, Cleomar Freire Gouveia, falecido aos 77 anos, era um daqueles seres capazes de morrer duas vezes. Não exatamente como os seres descritos por Wiliiam Shakespeare, segundo o qual só os covardes teriam esta condição. Primeiro, morreriam na véspera, pelo medo e covardia, o que não era o caso do homem falecido, pela segunda vez, nesta manhã.
“Gouveião”, como era conhecido o funcionário público que dedicou sua vida à Assembleia Legislativa do Estado do Acre (Aleac), como assessor da mesa diretora, morreu duas vezes porque, na primeira morte, perdeu seu amado irmão, José Gouveia, o “Zezé Gouveia”, em 2016. Deu uma parte de si, um dos rins, para salvar o irmão quando este caiu doente a primeira vez, com problemas renais.

O abnegado “Gouveião” doou um dos rins ao irmão que era carinhosamente chamado de “Gouveinha”. Transplantado, “Gouveinha” viveu ainda muito anos com o rim do irmão, mas vieram outras doenças e ele partiu numa madrugada do dia 24 de maio de 2016. Ali também morreu um pouco de “Gouveião”, na sua primeira morte.

Desde a morte do irmão querido, percebiam seus amigos e familiares, ele se tornara mais triste, sorumbático. Deixara de frequenta inclusive o “Bar do Papagaio”, onde costumava se reunir com os amigos de uma vida inteira.
Acreano, Cleomar Freire Gouveia, foi sepultado esta manhã levando consigo segredos, muito segredos da vida pública, como testemunha ocular de acordos e outras tramoias que só a política é capaz de produzir, ainda que seja uma ciência insubstituível quando os assuntos tratam de coisas de Estado. Começou a trabalhar na Assembleia Legislativa quando o Poder começou, exatamente em 1962, quando o Acre foi elevado à condição de Estado. Incialmente, eram apenas 9 deputados, que se reuniam numa sala acanhada na Escola Normal, onde hoje é o Cerb (Colégio Estadual Rio Branco), na Avenida Getúlio Vargas.

Familiares se despedem de Gouveião. Foto: ContilNet

Acompanhou, bem de perto, o crescimento do Estado e o aumento do número de parlamentares, sempre baseado no crescimento proporcional da população estadual. Carregava o regimento interno da Assembleia e outras leis estaduais na cabeça, de cor, para socorrer aos deputados quando eles precisavam. Assim, mais que assessor, se tornara amigo de parlamentares como Alcimar Leitão, Alberto Zaire, Wildy Viana, Édson Cadaxo, Felix Bestene, Hermelindo Brasileiro, Félix Pereira, Edmundo Pinto, Manuel Machado e Romildo Magalhães, entre outros. Os presidentes da mesa diretora não tomavam, decisões sem antes consultá-lo. Por isso, dizia-se que numa Assembleia de 24 deputados, ele era o 25º.

Aliás, pelo porte físico e o conhecimento, quem o visse atuando no plenário da casa legislativa o tinha como deputado de fato.

Comoção geral marca despedida de Cleomar. Foto: ContilNet

Durante mais de 30 anos, ele e o irmão atuaram como assessores na Assembleia. Coincidência ou não, os irmãos Gouveia se retiraram da Assembleia quando chegaram ao poder deputados com uma nova concepção política, aqueles ligados à Frente Popular do Acre, capitaneada pelo PT. Ambos se aposentaram na época, acusados de integrarem um grupo de servidores públicos com super-salários e por isso mesmo chamados de “Marajás”. Zezé Gouveia, o irmão mais politizado, ainda tentou continuar na vida pública, como secretário de Estado e depois como chefe de gabinete na Prefeitura de Rio Branco, no início dos anos 2000. Mas vieram as doenças e ele também teve que se recolher à aposentadoria.

Entre os segredos que “Gouveião” levou consigo estão, por exemplo, informações sobre a morte do então deputado Aluísio de Queiroz, que, especula-se, tenha sido por veneno adicionado ao café servido na própria Assembleia Legislativa. Assim como também as razões pelas quais o deputado Jader Machado, em 1984, levou uma cobra venenosa numa sacola para o plenário da Assembleia e a soltou entre os deputados. Também sobre o dia em que a então deputada Marlene Magalhães, irmã do então governador Romildo Magalhães, tentou esganar o deputado petista Nilson mourão, de pouco mais de 1m50 de altura mas um gigante na hora de atacar os adversários. Foi também um espectador privilegiado das ações de Manuel machado à frente do Poder Legislativo.

Jorge Viana e a filha de Cleomar, Sandra Gouveia/Foto: Reprodução

Além disso, “Gouveião” foi ainda testemunha de duas assembleias constituintes estaduais e estava presente no dia em que o capitão do Exército Edgar Pedreira de Cerqueira cercou o prédio da Assembleia, com soldados armados de metralhadoras e obrigou aos deputados, inclusive aqueles do PTB e aliados do governador José Augusto de Araújo, que eram maioria, “aceitarem” a “renúncia” do governante.

Enfim, baixou à terra fria um homem que, além de morrer duas vezes, sabia guardar segredos. E como sabia.

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