Única religião genuinamente brasileira e originária do AC, Santo Daime sofre ataques em outro Estado

Única religião genuinamente brasileira, originária do Acre e praticada principalmente na Amazônia e em árias partes do Brasil e do mundo, a Doutrina do Santo Daime está sendo duramente atacada por uma publicação chamada “Jornal Grande Bahia”, de Salvador. Os ataques têm partido de Juarez Duarte Bomfim, um homem que se apresenta como sociólogo e mestre em Administração pela Universidade Federal da Bahia (UFBA), doutor em Geografia Humana pela Universidade de Salamanca, Espanha, além de professor da Universidade Estadual de Feira de Santana(UEFS).

Num ensaio publicado, ele ataca, principalmente, a forma de tratamento dos seguidores da doutrina em relação a seus dignatários, chamados de padrinhos ou madrinhas. Bonfim classifica o tratamento como uma doença, a qual dá o nome de “padrinhite”. O próprio autor diz que os primeiros ataques foram feitos em 2005, quando foi publicado o primeiro artigo sobre o assunto, “sob protesto de alguns antropólogos”, os quais, segundo ele, são “atraídos pelo exótico, o extraordinário, às vezes o bizarro”.

De 2005 para cá, diz o autor, “a Padrinhite, doença que acomete os daimistas, só tem aumentado. O termo ‘padrinhite’ foi cunhado por um amigo ayahuasqueiro”, diz.
Bonfim começa seu relato dizendo que conheceu “uma família bem intencionada, onde muitos dos seus membros se converteram à Doutrina do Daime”. Os membros da família “criaram um ‘ponto’ doméstico, ao qual designaram “igreja”, e as anteriores relações familiares entre pais e filhos, irmãos e irmãs, genros, noras, cunhados, foram substituídas por “padrinho”, “madrinha” e os demais adeptos”.

E ele mesmo pergunta: “E que dizer de um vilão neo-ayahuasqueiro que criou cursos de fim de semana de formação de “padrinhos” e “madrinhas” do Daime, tentando transformar essa Santa Doutrina em um negócio de venda de ayahuasca?”. Daí – acrescenta – depreende-se a atualidade do tema. Vamos a ele.

Bonfim introduz seu artigo lembrando que “no Norte do país, há um costume generalizado de se tratar as pessoas de maior respeitabilidade da comunidade com a alcunha de padrinho”. Trata-se, segundo o autor, “de um traço cultural herdado das levas e mais levas de migrantes nordestinos que para lá se deslocaram durante os dois grandes ciclos da borracha”. Além disso, “hábitos, costumes e tradições do Nordeste ajudaram a formar a cultura nortista, junto com a influência turca e, principalmente, cabocla”.

O codinome padrinho é também usado, obviamente, quando essas figuras proeminentes da comunidade cabocla são de fato padrinhos de batismo dos seus inúmeros afilhados, pois os pais das crianças recém-nascidas tendem a convidar para padrinhos da sua numerosa prole, preferencialmente, pessoas de maior credibilidade dentro da coletividade, escreve o autor. “Daí que os “padrinhos” os são de fato e/ou de direito, indivíduos destacados daquele grupo social, fazem valer a consideração que lhes é depositada ajudando, protegendo e orientando os seus diversos afilhados. A ajuda dada aos afilhados pode ser de ordem material ou espiritual. Em se tratando de uma comunidade religiosa, como é a Doutrina do Santo Daime, esse auxílio ocorre nas duas esferas – material e espiritual”, acrescenta.

O autor demonstra conhecimento em relação aos fundadores da doutrina, no Acre. “Na Doutrina do Santo Daime, padrinho é Irineu (Serra, fundador); madrinha é Peregrina Gomes Serra, viúva do Mestre Raimundo Irineu Serra e dignatária do CICLU Alto Santo”, diz.

Raimundo Irineu Serra, o Mestre Irineu/Foto: Reprodução

Ele prossegue: “A liderança, o respeito e o afeto que seus amigos tinham por Sebastião Mota de Melo o faziam chamar carinhosamente de “padrinho”, e até hoje para aquele povo espalhado entre o Mapiá e a Colônia 5000 a expressão “padrinho” é usada como sinônimo do sr. Sebastião Mota”, afirma o autor sobre outro líder da doutrina.

Segundo ele, “esse respeitoso título foi herdado por seus dois filhos mais velhos, Valdete e Alfredo. E é bom lembrar que para este sofrido povo madrinha é a dona Rita Gregório de Melo. Na doutrina ayahuasqueira da Barquinha também encontramos os seus respeitáveis padrinhos e madrinhas, em Rio Branco-Acre”.

Em seu ensaio, o crítico conta que “na década de 1980 deu-se início ao processo de expansão da doutrina daimista através do Padrinho Sebastião Mota que, fiel à orientação de um muito conhecido dos seus hinos, “recebe todos que chegar”, generosamente abraçava profissionais liberais, estudantes, jovens mochileiros ou humildes caboclos que o procuravam em busca da luz do Daime”. De volta aos seus lugares de origem – ele prossegue, “esses visitantes da Colônia Cinco Mil e Mapiá recebiam as bênçãos e apoio do Padrinho para continuarem a comungar o Santo Daime com irmãos dispostos a conhecer a luz. Assim foi se dando o processo de abertura de novos “pontos” ou “igrejas” de Daime, inclusive com a sua mundialização a partir dos 1990”.

De acordo com o autor, “essas novas igrejas daimistas passaram a se estruturar seguindo a doutrina aprendida com o Padrinho Sebastião e copiando o modelo ritualístico aprendido nas suas breves ou longas estadias na floresta”. Entretanto, na transposição e implantação das práticas religiosas do Santo Daime originada lá no Norte do país, é comum observar uma certa rigidez nesta transposição, com elementos notadamente caricaturais como, por exemplo, indivíduos de alta escolaridade (professores e doutores) do sudeste brasileiro imitarem comportamentos, expressões, o sotaque caboclo etc. que culturalmente são característicos do nortista.

Bonfim lembra que, no passado, durante a ditadura militar, isso também ocorria. “Em movimentos políticos e religiosos milenaristas, onde os adeptos acreditam serem portadores de uma “missão” transformadora ou revolucionária, são frequentes as imitações e cópias dos supostos atores sociais originais. Quem da minha geração não teve, na universidade, um colega militante de organização clandestina revolucionária, que andava rasgado e mal cheiroso? Quando todos sabiam que a “figura” era membro das classes dominantes brasileiras? Andava assim rasgado e cheirava mal buscando identificação com o proletariado explorado”.

Segundo ele, dessa maneira há uma tendência aos novos adeptos urbanos da Doutrina do Santo Daime copiarem e imitarem tudo o que consideram como original, do ponto de vista ritualístico e comportamental. Como costumam “carregar nas tintas”, tais comportamentos mais se assemelham a um ‘macaquear’ o que vem do Norte. E o comportamento de tais indivíduos ou de grupo passa a ser visto como extravagante. E esses arremedos se tornam quiçá bizarros quando são praticados pelos “gringos”, isto é, daimistas estrangeiros – que se mostram mais ciosos e zelosos na busca da “pureza”.

O tratamento de “padrinho” e “madrinha” classifica como doença é também um dogma, na sua convicção. “Existem causos e mais causos de arroubos “ortodoxos” e “dogmáticos” de (velhos e) novos adeptos que, se não fossem trágicos, seriam cômicos. E daimistas assim exagerados correm o risco de entrar, coitados, na categoria de “rodados” (surtados). Não se sabe precisar a origem de como e quando o termo “padrinho” passou a designar dirigente daimista. Os substantivos próprios padrinho e madrinha se tornaram sinônimos daqueles daimistas que assumem papel de líderes e dirigentes das pequenas, médias ou grandes organizações. Eu mesmo, certa vez, em conversa com um pretenso líder daimista, senti a indução dele em me fazer chamar-lhe de “padrinho”, no lugar d’eu chamar-lhe de “senhor” ou “você” coloquialmente, porquanto que referia insistentemente a si mesmo como padrinho, esperando de mim o mesmo tratamento”.

De acordo com o autor, pelo que se sabe, não existe nenhuma institucionalização do termo, nenhuma formalização de caráter regimental dos “padrinhos”. E se assim for, quer dizer, se partir de alguma organização daimista a pretensão de institucionalizar e formalizar tal termo, ele não gozará de legitimidade entre as outras influentes instituições que não adotam tal designação – e até o criticam”.

O crítico faz um alerta: “senhores médicos, advogados, professores, engenheiros, arquitetos sulistas – isto é, não nortistas – que hoje desempenham a função de dirigentes de centros daimistas: vocês são no máximo padrinhos dos afilhados que batizaram, e ponto final. Não são “padrinhos da doutrina não”.

Ele também pergunta: “Vocês sofrem de padrinhite, doença que acomete os daimistas? Todavia, podemos perguntar: o que se esconde por trás do termo “padrinho”? Qual o objetivo da “padrinhite”?”.

Bonfim diz que é possível conjeturar sobre isso, “aventando a possibilidade intencional de, alguns indivíduos, buscando ser dirigentes daimistas, tentarem – com relativo êxito entre os seus pares – institucionalizar o título de “padrinho” como a designação para a função de dirigente de pontos daimistas (centros livres que passaram a ser chamados de igreja) para estabelecerem a infeliz prática de centralismo, autoritarismo e mandonismo existente na gestão organizacional de muitos grupos daimistas”. O modelo administrativo e de gestão dos centros daimistas “sulistas” – pretensamente copiado do Norte – é comumente patrimonialista, onde a estrutura física do templo, terreno e bens materiais são propriedades de um senhor, o suposto “padrinho”.

De acordo com o crítico, assim o dirigente da doutrina “manda e desmanda, e aos demais membros que quiserem permanecer comungando da santa bebida com aquele grupo, só lhes restam obedecer às vontades e caprichos do senhor. Comunidade com traços marcadamente feudais se estabeleceu assim em plena floresta amazônica… mas estamos falando agora das áreas urbanas das metrópoles brasileiras!”.

O comportamento não permitira gestão democrática das comunidades daimistas, diz o autor. “Gestão participativa, estatutos com plenos poderes depositados na Assembléia Geral, eleições para renovação dos quadros, proibição de eternização nas funções… nada disso foi aventado por esses “pontos” de Daime. Os grupos preferiram copiar um modelo de cargos de direção vitalícia e “infalibilidade papal”, que gera fanatismo e idolatria. Raimundo Irineu Serra combatia a idolatria, “não vos façais, pois, idólatras”, doença que acometia a muitos daqueles que recebiam a cura divina através do seu aparelho”.

O autor conclui seu ensaio contando que “O Mestre Conselheiro Luiz Mendes do Nascimento nos conta que, após uma graça alcançada: “Fui me aproximando e já fui me ajoelhando, tomando a benção e beijando a mão (do Mestre Irineu). “- Levante! Pode se levantar (…) Você pode ficar tomando a benção minha, tudo bem! Agora, de joelho, não! Beijar a mão, tudo bem – minha gente assim faz – agora, não me chame de papai. Grave isso no seu coração, no seu pensamento, me tenha essa consideração. Mas me chame mesmo de Padrinho. Foi quando ele me explicou a história entre padrinho e pai. Padrinho é uma palavra disfarçada, mas que quer dizer ao mesmo tempo pai. A partir daí, é meu padrinho até hoje”, disse.

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