Era uma sexta-feira, como a hoje, naquele oito de outubro de 1967, quando o exército boliviano, com apoio da CIA, a central de inteligência do governo norte-americano, fez, com algum orgulho, a exibição daquele cadáver, crivado de balas. Jogado sobre uma carroça de boi, despido da cintura para cima, esquálido e com barba por fazer, o corpo era do líder guerrilheiro Ernesto Che Guevara, mas a fragilidade das imagens apontava mais para uma espécie de santo, uma imagem bem diferente daquela cultuada em todo o mundo desde quando foi tirada, em 1960, pelo fotógrafo argentino Alberto Diaz Gutierrez Korda.
Diferente da imagem em que o guerrilheiro aparece com sua indefectível boina preta com uma estrela vermelha, com barba e cabelos ao vento, o Guevara daquela carroça lembra mais a imagem de Jesus Cristo recém-retirado da cruz. Aliás, no lugarejo de Vallegrande, em cuja selva Guevara fora capturado e morto, nos arredores da cidade Santa Cruz de La Sierra, a pouco mais de 1.200 quilômetros de distância em relação à fronteira com o Brasil, no Alto Acre, há, até hoje, informações de que, por ali, o líder guerrilheiro é santificado e opera milagres em relação à população local. O que pouca gente sabe é que, pelo menos três meses antes de entrar no território boliviano para tentar um levante militar nos moldes da Revolução em Cuba, ao lado de Fidel Castro, o homem que se tornaria mito da ideologia de esquerda e que é celebrado em todo o mundo, passou pelo Acre e, em Rio Branco, teria mantido contatos com acreanos simpatizantes de sua causa.
Dois desses acreanos com os quais o líder guerrilheiro se avistara em busca de informações sobre a situação na Bolívia teriam sido o futuro líder sindical Chico Mendes e o ativista político conhecido como João Borborema, ambos já falecidos. O provável encontro de Chico Mendes com o guerrilheiro teria se dado na incipiente BR-317, ainda sem asfalto e que não passava de um caminho de serviço, nas redondezas da fazenda Filipinas, nos arredores de Xapuri, para onde o então jovem Chico Mendes teria sido orientado a ir se encontrar “com uma pessoa importante da política mundial” e que depois, quando já era famoso, ao ver uma fotografia do homem com o qual estivera contato, era ninguém menos que Che Guevara.
Esta história era o próprio Chico Mendes que contava aos seus amigos mais próximos, como o comerciante e servidor público João Mendes, o “João Garrinha”, dono de um hotel pousada em Xapuri. “Ele me contou isso mais de uma vez sem maiores detalhes”, chegou a revelar “Garrinha” em conversas com amigos.
A história, a propósito, está registrada oficialmente, com alguma alteração, já que, pela história escrita o encontro teria sido casual e Chico mendes, na verdade, não sabia ao certo com quem estava falando. Numa entrevista concedida ao sociólogo Pedro Vicente, ex-delegado do Sesc no Acre, professor da Universidade Federal do Acre (Ufac) e autor do livro “Exercícios Circunstanciais”, publicado em 1997 pela editora Coivara, de Natal (RN), Chico Mendes faz o seguinte depoimento sobre caso. Chico Mendes com a palavra:
“Eu nunca tinha visto seu retrato (do Che), porque não circulavam revistas ou jornais no seringal, mas tinha ouvido seu nome através da Rádio Central de Moscou. Não me recordo bem o ano, creio ter sido em meados de 65 ou 66. Eu estava caminhando pela BR-317 e, cansado, parei no bar no entroncamento, a 12 quilômetros de Xapuri. Naquele instante chegou um cidadão vindo das bandas de Rio Branco. Demonstrava ser uma pessoa muito educada; encostou-se no bar e puxou conversa comigo e com outros que estavam próximos. Falou que tinha interesse em conhecer a selva amazônica, principalmente, os seringais e a selva boliviana. Indagou se eu era seringueiro. Respondi que sim e há muitos anos. Perguntou se eu não gostaria de acompanhá-lo até até os seringais da Bolívia, pois não tinha costume de caminhar na selva. Precisava de uma pessoa que conhecesse os varadouros e o levasse na direção da fronteira. Dava para identificar que não era brasileiro, misturava português com espanhol. Ele conduzia uma mochila, falou que possuía joias que aproveitava para vender e sobreviver durante o percurso. Não dispunha de muito dinheiro, mas perguntou quanto eu queria por dia para ir com ele até onde pudesse. Não aceitei o convite. Alguém me disse que era perigoso, podia ser um bandido. Não acreditei, mas não podia ir. Alguns meses depois, em Xapuri, passei diante da delegacia e um retrato me chamou atenção. Dizia que Che se encontrava em território boliviano para organizar o terror na região. Fiquei abalado. Lembrei-me que havia visto e conversado com aquela pessoa no entroncamento. Nunca pude imaginar – pensei comigo mesmo – que aquela pessoa fosse um terrorista. Olhei várias vezes a fotografia. Não tive a curiosidade de pegar a propaganda, um cartaz, e guardar comigo. Tempos depois, ao ler o livro sobre a guerrilha do Che na Bolívia reafirmei a convicção de que cruzei com ele. Posso afirmar com certeza: era o Che!”.
Pedro Vicente, o sociólogo que colheu este depoimento de Chico Mendes, já é falecido. Como também o padre José Carneiro de Lima, um personagem controverso da história do Acre. Em artigo publicado no semanário “O Jornal”, de Rio Branco, em 1980, o religioso conta que, na mesma época, Che teria feito indagações a seu irmão, Padre Peregrino, sobre como se deslocar para a localidade boliviana Santa Rosa, no alto rio Abunã. O frei indicou alguém que possuía canoa motorizada e levou o comandante da Revolução Cubana ao local onde o aguardava um avião. O próprio padre José, algum tempo depois, toparia durante uma desobriga no rio Acre, com dois “coronéis do exército brasileiro” no seringal Itu. Segundo ele, os “coronéis”, falando mal o português, prometiam muitas coisas e anunciavam para breve uma revolução no Brasil. Desconfiado, o padre seguiu imediatamente para Xapuri, fez contato com os militares e descobriu que os dois eram, na verdade, Inti Peredo e Dario, companheiros de guerrilha de Che Guevara, também mortos na Bolívia.
Já o possível encontro de Guevara com João Borborema é contado pelo professor de História da Universidade Federal do Acre (Ufac), Daniel da Silva Klein, em tese de Doutorado em História Social pela Universidade de São Paulo e também nos Anais do XXVI Simpósio Nacional de História – ANPUH, também em São Paulo, julho 2011. O título do texto é “Comunistas, revolucionários e a passagem de Che Guevara pelo Acre: um olhar sobre um contexto de resistências entre 1962 e 1966”.
De acordo com este historiador, “a possível passagem de Che Guevara é lembrada noutras histórias que não contradizem a que contamos, mas a complementam”. Duas grandes biografias do guerrilheiro estudadas pelo historiador acreano mostram que Guevara entrou na Bolívia pelo Mato Grosso. É o que dizem os autores a de Jon Lee Anderson (2005), norte-amerricano, e outra de Jorge Castanheda (1997), mexicano, ambos biógrafos do líder guerrilheiro. “As duas biografias trazem informações complementares, a despeito dos pontos de vista divergentes entre um autor norte americano e outro mexicano”, escreve Daniel Klein.
Os dois dizem que Che Guevara chegou à Bolívia entre outubro e novembro de 1966, após ter feito uma viagem de avião que saiu de Cuba, passou por Madri e chegou a São Paulo. Da capital paulista tomou um ônibus para Corumbá no Mato Grosso, daí foi de jipe com algumas pessoas para Cochabamaba, em território boliviano. Durante o trajeto Che Guevara teria usado um disfarce e até duas identidades provenientes do Uruguai, cujos nomes são de Adolfo Mena Gonzáles e Ramon Benítez Fernandez.
Os registros fotográficos dos documentos forjados por Che Guevara para essa viagem mostram um indivíduo usando grandes óculos, chapéu inglês, sobretudo e barba aparada. A aparência do guerrilheiro estava sensivelmente modificada para parecer um pacato, velho e honesto trabalhador qualquer do Uruguai.
Jorge Castanheda diz que baseou suas informações sobre esse trajeto de Che Guevara a partir de dois passaportes apreendidos pelo exercito boliviano, que tinham a mesma foto e carimbos de entrada e saída com dias diferentes do aeroporto de Madri. Sem aprofundar o questionamento das fontes de sua pesquisa o autor diz que tudo permite concluir que o trajeto de Cuba à Bolívia foi efetivamente o que consta nos documentos apreendidos.
Mas é exatamente os documentos apreendidos pelos militares bolivianos podem ser oriundos de um estratagema montado por Che Guevara para confundir os serviços internacionais de espionagem, não evidenciando, de maneira automática, o seu trajeto para chegar à Bolívia. “Portanto, o problema levantado ainda persiste, porque as pistas e evidências constantes nos documentos apreendidos de Che Guevara não respondem satisfatoriamente a pergunta de como ele chegou à Bolívia. É provável que a resposta a tal pergunta esteja viva nas reminiscências de alguns antigos ativistas dos movimentos comunistas e de esquerda residentes na cidade acreana de Rio Branco”, escreve o historiador.
Daniel Klein conta que, em uma noite do final de 1966, o acreano João Borborema, a quem ele entrevistaria para sua tese, é surpreendido com uma estranha visita por volta das vinte horas. “Um homem alto, barbado, de porte físico considerável e carregando uma volumosa mochila bateu na porta de sua casa. Quando João Borborema atendeu, o homem lhe perguntou: “Es Juan, hermano de Raimundo?”.
Raimundo Borborema, que vem a ser pai do falecido cantor Tião natureza, assassinado em agosto de 1992 em Rio Branco, é irmão de João Borborema e deixou o Acre com destino a Cuba, por influência de amigos simpáticos à vitoriosa revolução cubana conduzida por Fidel Castro e Che Guevara, dissera, antes de deixar a família no Acre e em Manaus (além de Tião Natureza, ele tivera outros cinco filhos, com outra mulher), que iria se juntar ao exército guerrilheiro de Cuba para uma possível guerra contra o capitalismo na América Latina. Coincidência ou não, era o mesmo sonho de Guevara de uma revolução em escala mundial, razão pela qual, antes de ir para a Bolívia, ele se aventurara pela África em busca de um movimento revolucionário local, mas decepcionou-se porque, segundo o próprio, em suas memórias, os africanos só tinham interesses tribais e jamais fariam parte de um exército.
Na conversa com João Borborema, o visitante de imediato sacou da mochila um postal no qual ele reconhecera a assinatura e a caligrafia de seu irmão. No postal, Raimundo não informava quem era de fato o portador mas pedia também que o levasse para Bolívia e que se preciso fosse o defendesse com a própria vida.
O teatrólogo Lenine Alencar, filho de João Borborema, contou ao ContilNet que seu pai sempre constava esta história e disse que, naquele encontro, disse ao visitante que não via seu irmão fazia algum tempo e quis saber como ele estava. “Bien, mucho biem”, disse o visitante.
Borborema logo reconheceu Che Guevara porque ele não estava disfarçado. “Tinha o rosto cabeludo de sempre, o semblante sério, mas uma personalidade muito simpática. Conversaram algumas amenidades enquanto preparavam-se para a viagem e descobriu que seu irmão naqueles dias estava vivendo bem acomodado em Cuba”, conta Daiel Klein a partir da entrevista com Borborema.
De acordo com o historiador, os dois saíram por volta de meia noite e rumaram para a cidade de Plácido de Castro, na fronteira com a Bolívia, percorrendo uma estrada de barro em um velho jipe. Chegaram ao destino passando de seis horas da manhã e seu João procurou um barqueiro que levasse seu ilustre companheiro dali em diante. O barqueiro atendia pelo nome de Airton e sabia como chegar no ponto em que Che Guevara queria ficar, seguindo para tanto os caminhos entre rios e seringais. A negociação entre os três chamou a atenção de Borborema, pois o comunista argentino pagou o barqueiro em dólar. Após guiar e encaminhar o ilustre visitante, seu João voltou para casa. orgulhava-se de ter ajudado um dos homens mais impressionantes da história, segundo sua concepção, e que fez isso em homenagem a tudo o que aprendeu com seu irmão, que tinha viajado por intermédio de Francisco Julião para Cuba e preparava-se para ser guerrilheiro em toda a América Latina.
Borborema, segundo seu filho Lenine, após isso, ainda chegou a ir para a Bolívia, a pé, pela estrada, par juntar-se a Che Guevara na selva boliviana, mas, ao que tu indica, depois de dois ou três meses, a saudada da família foi maior que as convicções do velho guerrilheiro e ele voltou para casa.
Dia 8 de outubro de 1967, o exercito boliviano informava ao mundo que Che Guevara estava morto. O velho Borborema chorou, lembra seu filho. O corpo do guerrilheiro só foi localizado 30 anos após sua morte, em 1997, e levado para Cuba.