Evolução do ‘novo cangaço’: mais violentos, grupos dominam cidades inteiras

Com armas de grosso calibre e veículos blindados, quadrilhas envolvidas em mega-assaltos a instituições financeiras estão se especializando no domínio de cidades inteiras. Com ao menos 30 criminosos, os grupos enfrentam as forças de segurança, explodem veículos para cercar rodovias e usam moradores como escudo humano, criando um cenário de terror que envolve toda a população.

Um levantamento feito pelo UOL com o auxílio de especialistas nesse tipo de crime aponta que ataques de grupos brasileiros afetaram áreas com 7,6 milhões de pessoas em mais de 20 cidades nos últimos seis anos.

A lista de cidades brasileiras foi elaborada com base em dados do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística). E inclui a ação de uma quadrilha que roubou R$ 120 milhões de uma transportadora de valores em Ciudad del Este, no Paraguai, em uma investida conhecida como “o assalto do século” (veja a lista abaixo).

Sob o domínio do terror - Arte UOL - Arte UOL

Segundo especialistas, o “domínio de cidades” é um crime tipicamente brasileiro e representa o avanço da criminalidade em relação às ações conhecidas como “novo cangaço” por serem mais perigosas e planejadas.

O ‘domínio de cidades’ está no topo da pirâmide das organizações criminosas no país. O ‘novo cangaço’ invade cidades menores, onde há falta de policiamento. Agora, esses grupos usam explosivos com acionamento remoto e atacam as forças de segurança para causar baixas mesmo. Nenhuma cidade no Brasil está preparada para lidar com isso.”
Tenente-coronel Lucélio Faria França, autor do livro ‘Alpha Bravo Brasil: Crimes Violentos contra o Patrimônio’

Na última quinta-feira (28), o assunto foi debatido em Salvador na palestra “Do novo cangaço ao domínio de cidade”, com a presença dos comandantes da Polícia Militar dos 26 estados brasileiros e do Distrito Federal. A ideia é discutir iniciativas para que as forças de segurança possam se preparar para ações do tipo.

“Os planos de defesa podem ser considerados como política de direitos humanos e prevenção ao crime violento de alta complexidade, pois evitam mortes de pessoas inocentes, de policiais e dos próprios criminosos. O importante é salvar vidas”, disse no evento o palestrante Ricardo Matias, especialista em ciências policiais e agente da Polícia Federal.

Ataques mais violentos e planejados

Os casos foram registrados em todas as regiões do Brasil, de acordo com o levantamento da reportagem. Só em 2016, foram oito mega-assaltos, mais do que o dobro em relação aos anos seguintes. Entre 2017 e 2020, houve, em média, três ataques por ano.

Contudo, os ataques recentes foram os mais planejados e violentos, de acordo com as autoridades. Na madrugada de 30 de agosto de 2021, criminosos espalharam mais de 90 explosivos de alta tecnologia em Araçatuba (SP), fizeram moradores reféns e ainda usaram drones para monitorar a ação.

Foi a maior quantidade de detonadores instalados em uma ação na história do país, segundo estudo elaborado pela Associação Mato-Grossense para o Fomento e Desenvolvimento da Segurança. O ataque foi apontado pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública como o mais violento dos últimos dois anos no estado de São Paulo.

No ano passado, quadrilhas especializadas em mega-assaltos planejavam roubos que miravam um desfalque somado de R$ 160 milhões, apontou o UOL com base em informações repassadas por fontes ligadas às investigações. Mas fracassaram nas principais ações, levando menos de 10% desse valor —46 pessoas morreram.

Quadrilha atacou batalhão no Paraná

O caso mais recente ocorreu entre a noite de 17 de abril e a madrugada do dia 18, quando uma quadrilha com fuzis, sete veículos blindados e explosivos invadiu Guarapuava (PR), a 250 km de Curitiba. O grupo, que tinha como alvo uma transportadora de valores, atacou o batalhão da Polícia Militar. O cabo Ricieri Chagas, que estava dentro de uma viatura de saída da unidade, morreu ao ser atingido por um tiro na cabeça.

Os ataques ao batalhão e à transportadora de valores foram simultâneos, segundo a polícia. A rodovia que dá acesso à cidade foi interditada pela quadrilha, que incendiou dois caminhões no local. Mas os criminosos deixaram a cidade sem levar nada. Vídeos mostraram moradores sendo feitos de escudo humano.

“Se algum juiz morasse em Guarapuava e estivesse na mira desse grupo, é possível imaginar algum ponto onde ele estaria a salvo? Infelizmente, as forças de segurança no Brasil ainda não perceberam a gravidade do problema”, analisa o tenente-coronel Lucélio Faria França, especialista no tema.

O impacto psicológico na população

Coordenadora científica do Laboratório de Estudos da Violência da UFC (Universidade Federal do Ceará), Jania Perla de Aquino disse que a origem desse tipo de crime teve início há 20 anos e está ligada à convivência de detentos com Marco Willians Herba Camacho, o Marcola, apontado como o chefe do PCC (Primeiro Comando da Capital).

Contudo, também vê uma escalada na violência nessas ações, que se tornam mais organizadas a cada empreitada. “Esses grupos estão mais numerosos, com armamento de grosso calibre e técnica para causar impacto psicológico na população e até mesmo nas polícias”, analisa.

Ela acredita que a melhor resposta das autoridades é investir em estudos e criar protocolos de atuação, evitando confrontos para preservar vidas. “É fundamental que não se entre em pânico para colocar em prática ações planejadas até para evitar o enfrentamento. É o mais seguro para a população. São quadrilhas que se planejam e ficam mais perigosas se pressionadas.”

Segundo a especialista, o avanço das ações para todas as regiões do país indica um aperfeiçoamento dos grupos. “As quadrilhas estão mais audaciosas e mais preparadas para enfrentar as forças de segurança em cidades maiores.”

 

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