Uma mulher tem que ter alguma coisa além da beleza

Há quase cem anos, em 1929, um compositor popular carioca chamado Lamartine Babo lançou uma música de tom carnavalesco, que faria muito sucesso nos festivais de rua durante décadas. A canção, adaptada de uma cantiga pernambucana ainda mais antiga, foi escrita por Lamartine, que era um conhecido boêmio, frequentador de bares e casas noturnas famosas do Rio de Janeiro. Conhecido por sua personalidade sedutora e magnética, Lamartine nomeou a música como “Mulata” e as chances são grandes de você já ter escutado os versos “O teu cabelo não nega, mulata, porque és mulata na cor. Mas como a cor não pega, mulata… mulata, eu quero o teu amor”.

Cerca de trinta anos depois, em meados da década de 1960, um diplomata concursado chamado Vinícius de Moraes, admirador da obra e personalidade de Lamartine, e da mesma forma, conhecido por sua vida noturna e seus vícios em mulheres casadas e uísque, lançou-se como compositor, tendo como uma de suas primeiras letras reconhecidas e regravadas, uma música romântica chamada “Soneto da Mulher Ideal”, que, de forma muito rápida, ficou mundialmente reconhecida, principalmente pelos versos líricos “Uma mulher tem que ter alguma coisa além da beleza… tem que saber amar, saber sofrer pelo seu amor, e ser só perdão”.

Não por outros motivos, a não ser a construção social de uma figura feminina frágil e passiva, hoje vivemos em uma sociedade que julga, condena e sacrifica as mulheres sem qualquer constrangimento ou arrependimento – os exemplos são esfregados na nossa cara todos os dias – e, infelizmente, a cultura estruturalmente machista que nos domina, continua sendo levada na brincadeira, como se tudo fosse uma grande bobagem, um mimimi de mulheres magoadas com seus homens viris e protetores.

Nas últimas semanas, tivemos notícia de uma juíza que manteve em isolamento judicial uma criança de onze anos de idade, vítima de estupro de vulnerável, proibindo a interrupção da gravidez, apesar das claras evidências e da autorização legal que a Constituição Federal já garante há pelo menos 28 anos. Não fosse a garantia jurídica do direito ao aborto e a repercussão midiática do caso, o que você acha que teria acontecido? Da mesma forma, qual o tratamento teria sido dado ao médico anestesista que foi preso em flagrante estuprando uma paciente (uma das mais de trinta que o acusam), durante um parto de cesariana? Se este homem foi capaz de estuprar uma mulher em pleno local de trabalho, com vários colegas na sala ao lado, quantas vezes ele deve ter feito o mesmo, em sua própria casa? Por que, ao ser preso pela polícia em flagrante delito, ele se manteve calmo, tranquilo, seguro de si? O que explica o fato de seu instagram ter ganhado pelo menos 15 mil seguidores em poucos dias?

A verdade todo mundo mundo já conhece: isso tudo ainda acontece porque infelizmente vivemos em um país extremamente machista, que não consegue enxergar a dura realidade da misoginia que separa os melhores empregos e salários para homens, simplesmente pelo fato de serem homens, fato que despreza a mulher enquanto ser humano dotado das mesmas capacidades intelectuais e políticas. Nossa sociedade haverá de continuar doente, instável psicologicamente, enquanto não houver solução para essa questão, que é bem mais do que social ou apenas feminina. Aliás, você homem, em suas redes sociais, defendeu os direitos femininos frente aos últimos acontecimentos? Postou sobre isso quantas vezes?

Na real, estamos diante de mais uma oportunidade de evoluir. Não só através da educação das crianças ao nosso redor, mas também da nossa própria disposição em progredir individualmente (e assim coletivamente). A única saída é a rebeldia do respeito absoluto às mulheres, até porque tanto Lamartine Babo quanto Vinícius de Moraes estavam completamente errados em seu cego e ridículo machismo retrógrado, que hoje violenta. Mulher não tem que servir só para amar. Mulher não tem que saber sofrer por coisa nenhuma. Mulher não tem que ser só perdão. A única coisa que uma mulher tem que ter além da beleza, coisa que naturalmente todas já têm, é a liberdade para ser e fazer o que bem quiser (e esta sim será a mulher ideal).

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