Todos os dias alguém repete a posição legalista que a Igreja Católica Portuguesa adoptou para responder ao relatório da comissão independente que investigou os abusos sexuais de crianças.
Posição que se resume assim:
— Ah, mas não transitou em julgado…
— Ah, mas isto ainda é um Estado de direito…
— Ah, já não se respeita a presunção da inocência?
Seguindo este raciocínio, só quando — e se — os tribunais condenarem os suspeitos, é que a Igreja afasta os padres acusados de abusos sexuais. Até lá, é uma injustiça. Além disso, repetiu o bispo José Ornelas, “só há nomes”, “só há nomes”, “só temos uma lista de nomes”.
A verdade está bem longe disto. Há muito mais do que nomes.
Só vejo uma explicação possível para ter esta posição: são pessoas muito ocupadas que não tiveram tempo de ler o relatório. São 486 páginas, percebe-se.
É para esses leitores que escrevo hoje: sempre que tiver a tentação de dizer “ah, mas não transitou em julgado…”, pense no que as testemunhas contaram.
Na primeira frase do relatório Dar Voz ao Silêncio, a comissão “agradece a todas as pessoas, instituições e organizações que contribuíram para a realização deste trabalho”. Hoje é a minha vez de devolver: agradeço a toda a comissão o trabalho que fez.
A comissão não se limita a ouvir as pessoas, a verificar a credibilidade dos testemunhos e a transcrever passagens das acusações. A comissão mostra-nos a dificuldade que as pessoas tiveram em contar o que contaram. Não omite o constrangimento das testemunhas. Pelo contrário. Algumas pessoas ligaram uma vez, duas vezes, três vezes para o número de telefone da comissão e desligaram. Não conseguiam ganhar coragem para falar. Outras não conseguiram falar de todo e preencheram o inquérito online.
Como esta mulher:
“F, nascida nos anos 60, filha de comerciantes, foi vítima de abuso durante a confissão. Tinha 11 anos e o abusador era um padre ‘velhinho de 80 e tal anos’, muito conhecido na comunidade e ‘muito simpático’. ‘Pedia para eu dizer os meus pecados e, quando eu dizia que fiz asneiras e disse palavrões, ele tocava-me em todo o lado, maminhas, punha-me as mãos nas cuequinhas e tocava no pipi. (…). Tocava, tocava. Foram cinco vezes. Até que comecei a mentir ao meu pai e deixei de ir… Aquele ordinário!!!!”. Está na página 236.
Lemos isto e pensamos, com alívio, que este padre já morreu. Isto era dantes, foi um padre velho e perverso, uma ovelha negra, morreu e já não faz mal a mais ninguém.
Engano.
Há testemunhas de muitas idades. Algumas têm a idade dos seus pais, outras têm a sua idade, outras têm a idade dos seus filhos. Muitos dos padres acusados estão no activo.
Aviso: a linguagem é explícita. Dirão que é pornográfica, que é indigno e desnecessário ser tão literal, que usar estas palavras não é bonito. Mas é assim que as pessoas contam o que lhes aconteceu. Amaciar o discurso é esconder a verdade.
Este é um Coffee break com bolinha vermelha no canto superior direito. Se não gostou de ler “pipi”, passe à frente e leia sobre coisas mais bonitas. Só vai piorar. Nesta história, tudo é feio.
Na página 320, a comissão reúne “as queixas físicas centradas em lesões de estruturas do corpo, associadas às formas de abuso com manipulação e/ou penetração”. Transcrevo a síntese feita pela comissão. À frente da queixa física, está a data de nascimento da testemunha:
— Sangramento, estive hospitalizado dois dias e estive algum tempo sem conseguir andar bem (1957);
— Fez-me sangue ao tentar-me penetrar (1982);
— Fiquei com o cu aberto (2006);
— Problemas no esfíncter anal (1970);
— Aleijou-me muito. Fingi que era do selim da bicicleta, porque durante muitos dias eu não me consegui sentar por dificuldade em dores (1996);
— As dores foram terríveis (1962);
— Inflamação no pénis. Foi a primeira vez que me puxaram a pele toda para trás (1952);
— Era virgem no primeiro acto de violação, sangrei muito (1979);
— Sim, pipi vermelho e inchado (2011);
— Doía muito, não quero dizer mais nada (2006);
— Metia os seus dedos pelo meu sexo e afastava os lábios, era doloroso (1970);
— Fez considerações sobre o tamanho do meu pénis, disse até que o do G. era mais fino, mas esticava mais e o meu era mais grosso, mas ficava mais pequeno e que eu o devia puxar várias vezes ao dia e puxou várias vezes, fiquei bastante inchado. Também porque ele queria ver se eu já ejaculava e, talvez por eu ser novo ou estar com medo, demorei muito a atingir isso e é claro que isso fez ferida na pele do órgão (1986);
— Depois da primeira violação, houve danos na zona rectal. Noutra situação, danos no pénis, onde se rompeu o prepúcio (1996);
— Graves, uma vez que não foi a única pessoa a fazê-lo. Um familiar também o fez, se o próprio padre apregoou que o fazia (1969);
— Sim, quando acontecia anal, doía muito. Uma vez, eu tinha o treino de futebol à 3.ª, 5.ª e 6.ª, na 5.ª era também explicação. Estava a correr e deitei sangue pelo ânus, mas não percebi e fui gozado por outro rapaz que disse, olha o A. tem sangue pelo cu. Os outros riram-se de mim e um mais velho disse assim: “Olha, ele anda a tomar no cu” (2002).
Isto é o resultado físico dos abusos sexuais dos padres católicos em crianças. As consequências psicológicas não cabem num texto de jornal.
Outra parte interessante é a justificação dada pelos padres a estas crianças para elas fazerem o que eles queriam ou aceitarem o que eles lhes faziam. Aqui vai a lista, está na página 298. Tudo foi feito em nome de Deus. A comissão fez a todas as testemunhas esta pergunta: “O que lhe dizia para abusar de si?”
As respostas têm semelhanças entre si, no conteúdo e na forma. “Há expressões e palavras que se repetem, padrões que se revelam de forma mais expressiva”, lê-se no relatório.
“A invocação verbal do que surgia na forma aparente de um ‘desígnio divino’ e a necessidade de o mesmo [desígnio] ter de ser cumprido era um argumento recorrente. Este poder espiritual, contido na mensagem religiosa da pessoa abusadora, tal como a designação do abuso como algo implícito à sua própria actividade profissional, traduzem-se também em discursos onde estava presente a ideia de algo descrito como ‘normal’, ‘natural’ e que ‘não havia que ter medo’. Em determinados casos, o abuso é mesmo referido como a forma de ‘tirar o mal’, ‘tirar o diabo’ ou ‘tirar a dor’, corrigindo assim aqueles que haviam pecado.”
Os excertos do que as testemunhas disseram que os padres lhes disseram (não se esqueça: isto são padres a falar com crianças):
— Que não havia mal nenhum (1977);
— Que não fazia mal, que não tinha mal, que era normal (1960);
— Eu não te faço mal! (1947);
— Que Deus queria assim (1970);
— Que era vontade de Deus (1998);
— Que Deus gostava que as pessoas mostrassem amor e que não fazia mal dar uns beijinhos na boca (1981);
— Não era abuso, era ‘normal’, era afecto, carinho, era como se fosse um irmão ou um pai. Era doente. Nós éramos crianças, se o padre fazia, era porque era certo. Era muito confuso para as nossas cabeças, não podia estar certo, mas ele fazia-o. Afinal era certo? Era errado? (1960);
— Que eu precisava de apoio espiritual e carinho de Deus por via dele (1977);
— Vou tirar a tua dor (1973);
— Que ia tirar o diabo, que o diabo entrava em nós pelas bocas do corpo e que era preciso que ele fugisse de lá, só que isso era a conversa dele para me abusar. E sei o dia certo e tudo em que foi, não me vou esquecer, dizia que eu podia gritar e cuspir porque ele depois ia sair (1996);
— Que tinha de contar e fazer tudo para ter o perdão de Deus. E ficar em segredo para ser perdoada (1981).
Estes testemunhos têm de ser levados a sério. Já percebeu: é difícil ler o relatório, mas não é por ser grande. É por ser incómodo. Ficamos maldispostos, indignados, aflitos. Uma amiga católica diz que não consegue “convocar esta situação”. Até hoje, não leu os pormenores porque é mais do que indigesto, é inimaginável, é um pesadelo.
“O pão que o diabo amassou”? Agora, é caso para falar do “pão que Deus amassou”.
(Transcrito do PÚBLICO)