Há um dito popular em que ‘o lobo sempre será mau se você ouvir apenas a versão do chapeuzinho vermelho’. A frase, referente a uma das maiores fábulas da literatura universal, vale de exemplo para uma das mais belas epopeias do Brasil – a Revolução Acreana – que nesta terça-feira (6), completa 122 anos.
O que todo mundo sabe é que na madrugada do dia 6 de agosto de 1902, homens liderados pelo gaúcho José Plácido de Castro tomaram o vilarejo boliviano de Mariscal Sucre, onde hoje está a cidade de Xapuri, tendo o Dia da Independência da Bolívia como engodo para a primeira batalha de uma série que viria contra ‘los hermanos’ por estas bandas.
Mas do que pouca gente tem conhecimento é que, diferentemente do que a maioria pensa, o empresário Neutel Maia, fundador do Seringal Empreza, que se tornaria Rio Branco, não estava muito interessado, digamos assim, em confusão com os patrícios, porque ele mantinha negócios diretamente com a Bolívia.
Explica o historiador Marcos Vinicius das Neves, um dos maiores especialistas em História do Acre, que “quando estourou o movimento, em 1899, Neutel de imediato se colocou contra a insurreição e se posicionou a favor dos bolivianos com os quais ele negociava. Durante toda a Revolução ele se manteve firme nessa posição, chegando a ser preso por Galvez”.
Porém, para entender melhor como pensava Neutel Maia, é preciso compreender como era a Rio Branco da época. Vinicius das Neves explica que a capital acreana de hoje era então uma cidade considerada “o olho do furacão nos dias da Revolução Acreana”. Sua relevância se mostra desde quando se tornou a sede do Departamento do Alto Acre e depois, capital do Território Federal do Acre, para finalmente ser a capital do Estado do Acre.
Dito isso, segundo o historiador, “nenhum movimento social ou político da história acreana conseguiu tirar de Rio Branco a posição de centro das decisões regionais”. E uma parte dessa importância está na forma como o seringal Volta da Empresa gradativamente se transformou em povoado, ou seja, em porto livre para as pessoas e mercadorias que circulavam no mais rico dos rios acreanos, durante o primeiro ciclo da borracha que vai de 1870 a 1912″.
É aí que entra Neutel Maia, fundador e proprietário do Seringal Volta da Empreza. Ele acabou deixando de priorizar a extração da borracha para focar seus esforços no comércio de aviamentos com vapores e seringais. “E principalmente [se dedicando] ao abastecimento de carne bovina fresca da região, tornando-se o primeiro “marchante” (negociante de carne) da história acreana”, explica Vinicius das Neves.
Esta condição o deixava meio que entre a ‘cruz e a espada’, já que era vantajoso comercializar com a Bolívia.
“Quando estourou a Revolução Acreana, em 1899, Neutel de imediato se colocou contra a insurreição e a favor dos bolivianos com os quais negociava chegando a ser preso por Galvez”
Sujeito desbravador e visionário
Para Isaac Ronaltti, outro importante historiador e autor do ensaio ‘Neutel Maia, a Biografia do Fundador da Cidade de Rio Branco’, por trás do mito erguido em volta do fundador do Seringal Empreza se oculta a “história da vida de um sujeito inquieto, desbravador, visionário e por vezes até controverso”.
Ele cita como exemplo de seu destemor, um levante liderado por Luiz Galvez em que Maia abertamente se posiciona a favor dos bolivianos. Temperamento, sagacidade, humor, além das suas transações comerciais, aliadas às suas viagens pelo mundo, o tornaram um homem audacioso.
Tais fatos podem ser vistos por muitos acreanos como atos inglórios. Mas antes de ser patriota ou sonhador, ou qualquer coisa do tipo, saiba que Neutel Maia era somente um comerciante desprovido de paixões ufanistas ou algo do gênero.
Sobre isso, o historiador Marcos Vinicius das Neves, ao dissecar a personalidade do pioneiro da capital acreana, diz o seguinte: “para entendermos corretamente a importância da iniciativa de Neutel Maia devemos levar em consideração que, na época, quase toda a alimentação dos seringueiros era importada dos países industrializados e vendida nos seringais a peso de ouro”.
O historiador prossegue: “graças a essa alimentação baseada quase que totalmente em produtos enlatados, os seringueiros acabavam adoecendo e contraindo diversas moléstias como o beribéri e o escorbuto”.
“Ir caçar na mata roubava dos seringueiros um tempo precioso nas estradas de seringa. Além das “bisavós” das latas de carne-bife, tão conhecidas até hoje no Acre, os seringueiros eram obrigados a se contentar com o charque que vinha do sul do Brasil, ou da Argentina. Era, portanto, necessário garantir um abastecimento regular de carne fresca para os seringais. Foi exatamente isso que Neutel conseguiu, ao negociar com os “ganadeiros” bolivianos – os pecuaristas –, o gado trazido pelos varadouros desde os campos ao sul do rio Beni”.
Este argumento é endossado pelo colega de Vinicius, Isaac Ronaltti. Ele diz que Neutel Maia “possuía sérios motivos para não se indispor com os bolivianos: primeiro que a dinâmica de comércio mantida por Neutel com os bolivianos era uma das razões de seu rápido sucesso econômico. Neutel trocava mercadorias industrializadas das praças de Belém e Manaus por “gado verde” dos bolivianos. Os animais eram transportados e abatidos no Seringal Empreza e durante muito tempo foram a única fonte de abastecimento de carne fresca do Seringal e da Villa Rio Branco”.
“Era necessário garantir um abastecimento regular de carne fresca para os seringais. Exatamente o que Neutel Maia conseguiu, ao negociar com pecuaristas bolivianos, que traziam por varadouros, o gado desde os campos do rio Beni”.
A Memória de uma Cidade*
(…) O Volta da Empresa se diferenciou de todos os outros seringais da região. Enquanto estes se caracterizavam pelo monopólio comercial do barracão controlado pelo coronel de barranco, onde ninguém podia negociar nada se não fosse com o poderoso seringalista, o Volta da Empresa, ao contrário, se tornou uma área livre para o estabelecimento de diversos comerciantes. Um porto seguro para os regatões sírio-libaneses que eram duramente hostilizados nos seringais, um lugar de trabalho para uma grande variedade de profissionais (desde advogados, médicos, barbeiros. fotógrafos, jogadores, artistas, até prostitutas que eram importadas da Europa) que também queriam fazer fortuna com o “ouro negro” sem ter que se internar nas isoladas estradas de seringa.
Por isso, ao iniciar a última década do século XIX, a Boca do Acre, a Volta da Empresa, localizada no médio rio, e Xapuri, no alto rio Acre, eram movimentados portos onde os vapores podiam se abastecer de lenha e os comandantes e marinheiros podiam descansar da dura e perigosa faina de transportar as pelas de borracha para Belém e Manaus, de onde eram exportadas para a Europa e Estados Unidos.
Mas voltemos às inevitáveis perguntas: e quando isso tudo começou? Como foi fundado o povoado que deu origem a cidade de Rio Branco? Deixemos a resposta para aqueles que conheceram e ouviram do próprio Neutel Maia a história que aqui nos interessa, como o Dr. Mario de Oliveira, seu afilhado.
“Durante o repasto doméstico, nosso Padrinho Neutel, que era um narrador admirável, de memória marcante – costumava contar episódios de sua vida, inclusive de sua penetração pioneira no interior amazônico, e de sua exploração regional acreana (…) colhi dos lábios do mesmo fundador a origem do topônimo ‘Empreza’ que ele dera ao local onde aportara em 28 de dezembro de 1882 e tornara sede de sua exploração de seringa (…)” (Revista Rio Branco Centenária, 1982, pág. 7).
Pouco tempo depois da assinatura do Tratado de Petrópolis e da criação do Território Federal do Acre, em 7 de setembro de 1904, o povoado da Volta da Empreza foi elevado à condição de Villa Rio Branco e passou a abrigar a sede do Departamento do Alto Acre. Até que, em 1920, Rio Branco se tornou a capital de todo o Território unificado.
Ou seja, apesar de todas as contradições de sua biografia, Neutel Maia passou a história do Acre como o fundador da maior e mais importante cidade acreana.
Como que para coroar a singular trajetória de Neutel Maia, conta-se que sua partida do Acre se deu em razão de intrigas políticas e que, por isso, na hora da partida do vapor que o levaria embora pra sempre, Neutel, do alto de sua ironia, amaldiçoou a cidade que ele mesmo havia fundado.
Porém quis o destino que tempos depois viesse a morrer no Rio de Janeiro, vitimado por um infeliz atropelamento em plena avenida RIO BRANCO.
*Marcos Vinicius das Neves