‘Não tenho mais alma’, escreve pai de estudante de medicina morto pela PM em carta endereçada à Lula

Em texto compartilhado nas redes sociais, Julio Cesar Acosta Navarro pede justiça e critica o governador Tarcísio de Freitas e o secretário de Segurança Pública Guilherme Derrite; "Sinto a dor dilacerante, a angústia e a raiva, de lembrar as últimas imagens dele me pedindo para salvá-lo", escreveu. Leia a íntegra da carta

O médico Julio Cesar Acosta Navarro, pai do estudante de medicina Marco Aurélio Cardenas Acosta, morto com um tiro disparado por um policial militar durante uma abordagem na madrugada de 20 de novembro, na Vila Mariana, Zona Sul de São Paulo, publicou uma carta aberta ao presidente Lula (PT) em suas redes sociais. O policial responsável pelo disparo foi indiciado por homicídio doloso.

Marco Aurélio, de 22 anos, cursava Medicina na faculdade Anhembi Morumbi. De acordo com o boletim de ocorrência, o jovem teria golpeado a viatura em que os policiais faziam uma ronda de rotina na madrugada de quarta-feira, por volta das 3h. Em seguida, ele correu para dentro de um hotel na Rua Cubatão, onde foi alcançado pelos agentes.

Trinta dias após a morte do seu filho, o médico Julio Cesar Acosta Navarro, que também é professor da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (USP), divulgou uma carta direcionada ao presidente Lula, na qual pede mudanças e clama pelo fim dos casos de violência policial em São Paulo.

“Sinto a dor dilacerante, a angústia e a raiva, de lembrar as últimas imagens dele me pedindo para salvá-lo, deitado numa sala de emergência, em choque hemorrágico, sussurrando: ‘Pai, me ajuda, pai, me ajuda…’. Hoje não tenho vida nem essência, nada. Um fantasma vale mais, porque ele tem alma e eu não mais”, escreveu.

Julio Cesar relata que na madrugada em que seu filho morreu pediu aos policiais informações sobre o caso para ajudar no salvamento, mas os agentes se recusaram a compartilhar detalhes da abordagem. Ele também criticou a postura dos PMs, dizendo que eles frequentemente estavam com as mãos nas armas, como se Julio Cesar representasse uma ameaça.

O médico critica duramente o secretário da Segurança Pública de São Paulo, Guilherme Derrite, apontando seus antecedentes criminais e dizendo que ele teria incentivado a morte e a violência.

Ele também menciona o governador Tarcísio de Freitas: “Finalmente, o sr. governador Tarcísio de Freitas, célebre pela sua crueldade e desprezo pelo sofrimento de famílias, desafiando até a ONU, se burlando do público e afirmando publicamente que não estava ‘nem aí’, incentivando mais assassinatos pela PM sobre gente humilde.”

Leia a carta na íntegra a seguir:

Sr. Luiz Inácio Lula da Silva

Excelentíssimo Presidente da República Federativa do Brasil

Com o maior respeito e admiração que sempre tive pela sua trajetória de vida, gostaria que você ouvisse as minhas palavras.

Hoje cumpre-se 30 dias após a pior tragédia que destruiu minha vida e de toda a minha pequena família. O assassinato do meu filho Marco Aurélio, estudante de quinto ano da faculdade de medicina, cheio de saúde e alegria, da maneira mais cruel e covarde, pelo Estado de São Paulo, às mãos de membros da PM e com a cumplicidade de toda a hierarquia superior.

Cada manhã que acordo eu não encontro aquele meu garoto amante do futebol, da música e cheio de carinho. Sinto a dor dilacerante, a angústia e a raiva, de lembrar as últimas imagens dele me pedindo para salvá-lo, deitado numa sala de emergência, em choque hemorrágico, sussurrando: “Pai, me ajuda, pai, me ajuda…”. Hoje não tenho vida nem essência, nada. Um fantasma vale mais porque ele tem alma e eu não mais. A dor levaremos a vida toda até o final da nossa existência porque será o desígnio dos deuses, mas a angústia, a humilhação e a raiva contra os criminosos em busca da “justiça dos homens” é o último que me resta agora.

Os policiais militares Guilherme Augusto Macedo e seu comparsa Bruno Carvalho do Prado, que em maior número, maior tamanho, treinamento militar, superprotegidos e armados com todas as armas, atiraram covardemente à queima-roupa no meu filho que usava um short e um chinelo, por opção de sua personalidade.

Na sequência daquela madrugada de terror, membros da Polícia Militar, cujo responsável ainda é o Comandante Coronel Cássio Araújo de Freitas, desenvolveram uma cumplicidade que, ainda com meu filho lutando pela sua sobrevivência, divulgaram oficialmente falsidades, culpando meu filho, acusando-o de querer tirar a arma deles.

Violência contra pessoas pobres e atitudes racistas, como foi o caso do meu filho, foram demonstradas claramente pelos crimes sobre outras pessoas e pelo sofrimento de famílias que se somaram à nossa tragédia, que agora é amplamente conhecida.

Eu mesmo fui testemunha direta naquela madrugada da atitude de outros PMs em várias oportunidades, quando eu cobrava o paradeiro do meu filho ou informações do que tinha ocorrido para poder usar isso tecnicamente no salvamento cirúrgico do meu filho. Me foram negadas informações, além de que todos mostravam uma mania de pegar suas armas como se eu, baixinho, professor de paletó, cabelo grisalho fosse um “Rambo” ameaçador para eles.

Atitude aprendida muito bem nas academias militares com certeza. Nesse inferno de fatos, ressalta a figura do Secretário de Segurança SP Guilherme Derrite, chefe superior da PM que, apesar de ser um oficial com antecedentes e frases incentivando a morte e violência, paradoxal e inexplicavelmente é responsável pela segurança dos cidadãos.

Ainda na sua primeira manifestação pública, após se esconder da mídia e pedir apoio ao padrinho dele, outro personagem vulgar ladrão de joias, inescrupuloso e promotor da morte de centenas de milhares de vidas pelo Covid-19, Derrite ainda definiu o trabalho dele como “o bem” e as denúncias e reclamações pelos crimes da PM como a minha, com esta carta, define como “o mal”. Derrite mais parece um palhaço tirado dos tempos da Inquisição.

Finalmente o Sr. Governador Tarcísio de Freitas, célebre pela sua crueldade e desprezo pelo sofrimento de famílias, desafiando até a ONU, se burlando do público e afirmando publicamente que não estava “nem aí” incentivando a mais assassinatos pela PM sobre gente humilde.

Tarcísio, após 40 horas de pressão total de toda a mídia do país pelo covarde crime de Marco Aurélio, anunciou um lamento público hipócrita e uma promessa de punição severa aos culpados. Somente que, pelo que vi com muita dor nestes trinta longos dias de uma justiça sem tempo, os assassinos não sendo presos, os chefes da PM dando declarações à grande mídia com falsidades sobre o meu filho e outros dando risadinhas passeando em jatos particulares, Tarcísio não disse quando faria isso, porque se referia, claro, ao Juízo Final ou quando os extraterrestres invadem a Terra, esperto ele.

Apelo ao Sr. Presidente, minha última esperança para aliviar a dor da minha família, de outras mais e poder amanhã salvar nossos próprios filhos.

Dr. Julio Cesar Acosta Navarro.

Professor da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo.

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